domingo, agosto 06, 2006

Sobre o mundo-cão e a inadequação

Já não é a primeira vez que escrevo aqui sobre o mundo-cão moderno que nos absorve, desumaniza, suga, põe de joelhos e faz chorar.
É óbvio que não há vida humana em sociedade sem o trabalho, sem essa cooperação mágica entre os seres, que é, somada à inteligência, o que nos permite abandonar as cavernas, a vida nômade, a carne sem sal. Mas é óbvio também que ao ser humano, posta sua racionalidade, não é suficiente ter o dia para o trabalho e a noite para dormir. Seres humanos têm sede de experiência, e as melhores coisas do mundo provavelmente foram criadas em momentos de extrema necessidade ou de lento tédio viscoso.
Mas há momentos em que não dispomos nem da possibilidade do tédio, porque já não há sequer o dia para o trabalho e a noite para o descanso. Porque descansar é perda de tempo, é claro. O tempo custa caro e as coisas devem ter utilidade: cabeça para usar boné. Um professor de minha mãe costumava brincar com os alunos que alegavam falta de tempo. Segundo ele, o certo é dormir no ônibus, a caminho de casa. Da meia-noite às 6h da manhã, estuda-se.
A piadinha, em contexto adequado, pode até guardar alguma comicidade. Mas o fato é que parece consistir em uma definição das piadas o fato de elas possuírem sempre uma bunda feia. Podem ser sobre racismo, discriminação, machismo, atos imorais, estereótipos equivocados etc. Nesse caso, a piada decalca um pouco do que acontece aos seres humanos que mal saem da adolescência e já são espremidos entre as engrenagens do capitalismo, que não exige deles nada além do que se pode dar. E eles dão a vida.
Como havia dito, nenhuma sociedade sobrevive sem o trabalho. Disso até vespas e formigas sabem. Importante notar que vespas e formigas não possuem consciência; possuem a inteligência de um motor de Fusca: trabalham e isso é em que consiste suas vidas. Garantir-lhes a sobrevivência é o suficiente. Vivem porque vivem, nada além.
Aos homens, não basta respirar.
O próprio caráter racional do ser humano quase implica insatisfação: sobreviver já não é o suficiente. Comida não basta: pedimos sashimi apenas de salmão, afinal atum é menos saboroso. Cria-se, portanto, uma tensão entre a natureza, que não tem nada de projetado para abrigar seres racionais que necessitam de eletroeletrônicos, e os seres humanos, que não se contentam de comer carne de caça crua.
Desprezar o atum é procurar um sentido para a vida, e o hedonismo parece ser a manifestação primeira da racionalidade humana.
Entretanto, parece ser cada vez mais difícil evitar que a tensão entre a natureza e o ser humano torne insuportável a vivência humana, já que o ser humano não pertence a esse mundo e está sempre e irremediavelmente deslocado. A falta de espaço para a vida parece então nos arrastar para um lugar que já é pequeno para nos abrigar: a vida que é antes de tudo primal, que não é a vida humana, mas é a vida pré-humana e, portanto, insuficiente e friíssima.
Quanto a quem não é gado, que seja dada a má notícia: não há espaço aqui. É necessário voar para longe, espaço afora. Nas idéias, na morte, no inferno. Tudo parece mais confortável que esse mundo que não alimenta nada além da nossa capacidade de apertar parafusos dia após dia, até sempre.
Em relação a quem acredita que vai conseguir cavar espaço nesse mundo, devo dizer que admiro a vossa força e coragem de viver.
No fim de tudo, não resta mesmo muita escolha além do suicídio ou da resignação.
Depois ainda dizem que somos livres.