sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Encontros, despedidas e tendência à falta de imaginação

Elza chegou em casa e bebeu soda depois de brigar com Martim por o ter visto em seu quarto beijando outra mulher. O roçar de corpos lhe causou o choque que provocou o grito e a reação explosiva: atira-se um vaso nos amantes. Martim a seguiu escada abaixo tentou dizer a ela que gostava dela -- e da tal da Valdirene, dita Val, também, apesar de não saber explicar como gostava das duas.

Elza gritou enquanto lágrimas lhe invadiam os olhos e umedeciam os três quintos de rosto que ficavam abaixo da linha de seus olhos. Vociferou que era safadeza, que se abraçassem, ele um safado e ela uma vagabunda, pois se mereciam, e depois saiu, sendo seguida de perto por Martim.

Ela tropeçou na escada, caiu com a saia levantada -- em tempo, a calcinha era nova -- e esfolou os joelhos. Ele bem que a ajudou a levantar, mas ela livrou-se dos braços dele, ganhou a rua e tomou o 3141 Terminal Pq. Dom Pedro II, que a deixou a quatro quadras de casa.

Em casa, apareceu na soleira da porta de entrada com os joelhos de sangue escorrido, com o vestido sujo, os cabelos despenteadas e uma expressão que lhe dava a um só tempo ares de idiota e de perturbada. Em sua cabeça, despontava sonora uma canção do Roberto Carlos, que ela achava que tinha tudo a ver com a traição e a separação, e lhe vinha um nó à garganta.

Enquanto a Helena pedia a Téo o divórcio e os comerciais faziam esperar pela reação de Téo, Elza abria o armário da pia da cozinha e pegava o pote amarelo de soda cáustica Búfalo que ficava dentro dele. Quando Téo disse a Helena que ela era o amor da vida dele, o primeiro e o único, Elza tomou a soda e só voltou a si no dia seguinte, já no hospital municipal, com três vizinhas, todas de regatas e bastante robustas e com uma penugem meio escura no buço, a seu pé, cochichando.

Valdirene, dita Val, foi outra que se viu mexida pelas atitudes de Martim, sobretudo no que diz respeito à corrida dele atrás de sua namorada furiosa. Resolveu que estava sendo preterida e que era da outra que Martim gostava. Apanhou suas sandalhas e prendeu-as contra o corpo com o braço direito; o braço esquerdo ficou incumbido de carregar a bolsa marrom de couro falso e tamanho exagerado. Deixou a porta escancarada e desceu pelas escadas, chegando a tempo de ver Elza saindo em direção à rua e Martim aturdidamente coçando a cabeça a um metro e meio da soleira. Valdirene, a tal Val, dita vagabunda e sem-vergonha por Elza, chegou em casa, abriu uma cerveja. E outra. E assim sucessivamente até dormir à mesa da cozinha e acordar com a garganta raspando devido à bebida gelada e a cabeça a ponto de explodir por conta do álcool. Dois dias assim e Val já não pensava mais tanto em Martim.

No hospital, dois dias depois do incidente com a tal base corrosiva, Elza sentia ainda muita raiva. Sua mãe lhe visitava e ela se divertia lendo a Tititi ou mesmo conversando com Marcelo, o enfermeiro que lhe vinha trazer o caldinho gelado e insosso de legumes que ela tomou por alguns dias naquela época.

Valdirene, a tal Val, casou-se com Martim, pois acreditou quando ele lhe foi procurar com uma rosa vermelha. Ele pensou em fazer o mesmo com Elza, mas pensou que não seria bom vê-la enquanto estivesse convalecendo... Acabou desistindo conforme o tempo passou, pois Val acabou lhe ocupando muito o tempo, juntamente, aliás, com Maria, a quem ele chamava secretamente de galega, que era a vizinha loira que lhe havia feito o curativo na testa após o fatídico dia em que Elza lhe atirou um vaso e que não havia ainda entrado na história.

Elza casou-se com Marcelo, é claro, e trabalha fazendo doces para fora enquanto ele não arruma outro emprego... Sim, ele foi demitido do hospital e, apesar de não falar sobre o assunto, dizem as vizinhas que foi porque foi surpreendido beijando uma paciente cujo dedão havia sido esmagado por um tijolo baiano.

domingo, junho 29, 2008

O bebê de Rosemeire

Ver filmes lhe haviam estragado a vida. Eles lhe haviam ensinado a acreditar em almas gêmeas e em destino. Tinha certeza de que havia uma pessoa que lhe fosse fazer feliz para sempre. Enquanto não o encontrava, gastava uns trocados toda semana em uma edição da Carícia, em que via os meninos de Malhação sorridentes falando sobre como suas parceiras ideias deveriam ser, sobre quais são suas comidas prediletas. Ela não percebe o photoshop no rosto deles. Nem a venda em seus próprios olhos. Recorta-os todos, e cola na agenda, junto dos bilhetinhos que troca nas aulas com suas amigas enquanto a professora fala sobre uma álgebra incompreensível, para a qual não parece haver espaço em sua vida. Ela pinta as unhas de vermelho toda semana - as dos pés, sua amiga pinta, pois a falta de exercício lhe rendeu, além do encurtamento nos tendões e da falta de flexibilidade, uma curva na coluna que lhe incomoda se ficar muito tempo curvada. Na verdade, já passa tempo de mais curvada. Não tem postura devido a seus músculos flácidos. O excesso de salgadinhos e a bebida renderam a ela e suas fezes um aspecto amarelado. É o que ela inconscientemente ganha por abusar da boa-vontade de seu fígado.

Eu sempre curti assistir TV, ainda mais quando a Márcia vinha aqui. Ela é doida pelo Richard Gere. Sempre vemos alguma coisa na Sessão da Tarde antes que comece Malhação. Às vezes ela traz um pacote de salgadinho Fofura e nós comemos tudo. Ela faz minhas unhas do pé, porque eu tenho dor quando fico abaixada muito tempo. Gosto delas vermelhas e passo a lixa no calcanhar porque ele racha. Tenho um pôster do Cauã Reymond na porta do meu armário. Minha mãe às vezes entra aqui, manda abaixar o rádio, diz para eu limpar a sujeira do cachorro e tirar o pó. Odeio tirar o pó e, por isso, acabo dizendo que já faço, que já vou, que me deixe ouvir um pouco de música, que é o que me faz relaxar depois que eu volto da escola. Às vezes, saio da escola e fico com os meninos ali perto, num bar, fumando e bebendo alguma coisa. É, eu fumo... É a parte mais legal do dia - ali dou um tempo para esquecer da encheção da minha mãe, da álgebra que eu não entendo, e ainda vejo se encontro o Gui. Às vezes me canso de esperar para ver o Gui e acabo dando uns beijos no Paulo. Em casa, não tem internet.

Às vezes, depois da escola, se sobra algum dinheiro, compramos cigarros e um saco de Fofura para comer à tarde na casa da Rosemeire. Às vezes damos uma olhada nas revistas que trazem os meninos da TV falando daquilo que gostam. Normalmente, diz a revista, fizeram escola de teatro enquanto estavam na escola. São lindos e eu às vezes penso um pouco se é com um tipo assim que eu vou casar. Outras vezes, penso que preciso mais de um Richard Gere. A Rose, não... Ela vai acabar com alguém mais novo, tipo o Cauã Reymond... Ou talvez, por falta dele, ela fique mesmo é com o Paulinho. Era com ele que ela estava na cama quando o estrado arrebentou e ela deu com as costas no chão e foi parar no hospital e ficou quatro dias gemendo e à base de Tandrilax. Talvez nas camas, do Paulinho e do hospital, seja o lugar onde ela esquece do Cauã.

Pior que ensinar álgebra e perceber que o conteúdo não é absorvido é perceber que não é aquele o único conteúdo a ser absorvido. Parece que falo outra língua, que sou de outro mundo. Fui ontem da escola para o ponto de ônibus e, no caminho, vi duas meninas, ambas do primeiro ano, num boteco. Entre bebuns, meninos mais velhos e outros caras - entre eles, o Paulinho, traficantezinho-de-porta-de-escola -, elas fumavam e bebiam cerveja. O boteco é ponto de drogas, é sabido, e isso me faz pensar que algo vai mal.

Era umas quatro da manhã já quando chegamos da balada na minha casa. Tinha chamado a Rosemeire para a balada e ela foi porque mulher não pagava até 1h da manhã; aí, era só pagar o busão. Ela estava altinha já porque tinha tomado umas cervejas e dado uns tapinhas. Toda soltinha. Deitou na cama e eu deitei junto. Em pouco tempo, estávamos sem roupa e desistido de ficar só nos carinhos. Ela era tinha um cheiro estranho na boca e ela era toda meio amarelada. Estava meio gordinha também. Primeira virada na cama e o estrado quebrou. Acabei tendo que levar no pronto socorro porque sentiu muita dor. Ela não tinha dinheiro para o remédio que o médico receitou, então, além de não ter rolado de passarmos a noite juntos, tive que comprar o tal remédio.

Dei sinal para um táxi e ele não parou. Acabara de sair cansada de um plantão. Xinguei o motorista com raiva. Chovia, chovia. Dei sinal a um segundo táxi, quando já estava encharcada. Ele parou, eu entrei e seguimos. Quatro quarteirões para frente, vejo o primeiro táxi sobre a calçada - um poste torto em sua frente, o motorista inconsciente, a buzina disparada, um barulho infernal sob a chuva que ainda caía. Há vezes que parece que a providência nos protege. Sentia-me encharcada, com um princípio de resfriado, mas salva. Nunca se sabe quando o taxista nos ignorará ou o estrado da cederá para nosso bem - apesar do Tandrilax.

Um dia, Rosemeire saiu com as vinte unhas vermelhas e uma saia curta e umas amigas e Paulo e uns outros meninos. Nasceu, nove meses depois dessa noite, uma criança que hoje tem sete anos. Ela vive com a mãe num cômodo-e-cozinha no quintal da casa da mãe de Rosemeire. Rosemeire ainda detesta tirar o pó, mas descobriu que cozinhar é bastante pior, motivo pelo qual a criança termina por comer bastante miojo, o que a mantém magra, ao contrário de sua mãe. A criança é também bastante pequena para sua idade e vive meio suja. Herdou da mãe a cor amarela. A mãe, a criança sabe ser Rosemeire; do pai, Paulo, nada sabe além de que viajou quando ele era bem pequeno. Não é de todo mentira - viajou, sim, para uma penitenciária em Marília faz já um ano e voltará em quatro se tiver bom comportamento.

domingo, março 23, 2008

A maioridade de Robson Cruz

Caminhava pela calçada de cimento e pedra já havia uma hora e meia. Sua orelhas e mãos haviam esfriado devido ao vento, que lhe gelava os ossos. As articulações doíam. As têmporas batiam.

A garoa começara havia pouco e caía diagonal sobre seu rosto fino branco pálido femino. Em breve estaria ensopado. Sobrancelhas contraídas, prenúncios de pele gretada. Era feio, o pobre.

Nos ônibus, as pessoas se amontoavam. Eram 18h, e as luzes dos carros formavam colares de contas vermelhas Av. Rebouças acima. As pessoas enjauladas entre as janelas embaçadas dos ônibus. Várias pessoas nos ônibus. Tristes transeuntes sem nome. Ônibus laranja, ônibus azul, ônibus amarelo, ônibus, ônibus, ônibus.

Terminara o trabalho e passara no banco para carregar o telefone. Deixara cair molho no uniforme. Passara sabonete líquido na mancha já seca na hora de seu intervalo, para esfregar quando chegasse em casa.

O freio dos ônibus, a primeira marcha, o freio dos ônibus - a luz amarela na tarde. Estaca-se.
Há que se acordar às 5h45 para chegar no trabalho. O trânsito é impossível depois das 6h30. Cada vez mais impossível - engessado. A conta de luz vence todo dia 10, e este mês a comida está pela hora da morte.

Tinha 18 anos e havia dois meses que tinha uma conta no banco. Toda quarta-feira comia picadinho apesar de odiar carne cozida. Nesse dia comprava também uma trufa, que lhe fazia esquecer do sabor da carne que se lhe enterrava entre os dentes e o aço do aparelho.

Subia a Rebouças sob a chuva. Sobre seu asfalto úmido, o longo colar de imobilidade escarlate.
Tinha 18 anos e seu próprio headset na mochila.
Era terça-feira, dia 27 de maio de 2008.
Eram 18h.
Arfava.
Chovia.
-Acre é o ocaso da vida.

domingo, novembro 25, 2007

A busca

"Meu bonitinho" foi como ele lhe chamou, e o outro, ainda que aparentasse algum interesse, foi sugado para uma outra esfera, em que não havia nada além do escrutínio de algumas lembranças que faziam com que ele sentisse ausência, bem ali, em seu estômago, já que era no estômago que ele sentia a maioria das coisas. O estômago agora estava cheio daquela sensação que apenas a angústia e a brisa matinal causam nas pessoas - um frio inacreditável que lhe gelava os ossos, apesar da claridade do sol. Pensou em sua mãe, em Bruno, em amizades para as quais não encontrava mais tempo ou sentido, na situação precária de suas contas - se nada realmente importa, por que sua situação era tão opressiva?
Era inescapável, entretanto: estava ali, num quarto, e alguém o chamara de "meu bonitinho", alguém que, como ele, apegava-se a algumas migalhas de um sub-amor qualquer, infinitamente opaco, para dar algum sentido a esta agitação que o senso comum chama de vida.
Ao pensar nisso, tudo pareceu-lhe patético. Os abraços, o suor que escorria e os beijos não seriam capazes de tanto. O quarto era barato; dois pedaços do mosaico de espelhos do teto haviam caído. Pensou que um pudesse cair e enterrar-se-lhe diretamente na garganta e seria o fim de tudo.
As paredes azuis estavam cheias de bolhas, e a tinta caía dias após dia. Havia mofo e a sensação era de o planeta todo cheirava a vinagre, irremediavelmente.
O ritmo acentuara-se. O espelho. A garganta. Que a cortasse sem dó, pois já era inútil - fazia anos que não produzia um som qualquer que fosse genuinamente forte, pungente. Havia a morte da alma; havia a rouquidão perene.
Pensou no trabalho - os músculos retesaram-se; gemeu de modo insincero, pois ainda lhe sobrava, teimosa, alguma generosidade. Por que era mesmo que se sujeitava a algo assim?
Uma das mãos encontrou outra e os dedos entrelaçaram-se. A maldita empregada não virá amanhã; há reunião de pais na escola de sua filha. As pessoas têm filhos tão inadvertidamente...
"Meu bonitinho"... "Meu"... "bonitinho"... Era para rir. Quem, em sã consciência, diria algo assim - assim, inadvertidamente? Uma mão pousou em sua nuca, firme, trouxe sua cabeça para frente. "Bonitinho"... Era invasivo, carinhosamente invasivo, e era a transgressão do pacto, afinal, não era de comum acordo que estavam ali comungando de um mesmo vazio?
Que viesse um terremoto, um cataclisma, que uma lâmina de espelho os transpassasse. Inundação, desmoronamento... Nada importava e nada seria inédito, pois, fatalmente, já ocorrera antes, sem maiores conseqüências. A cabeça do mais alto, cansada de mentar, pensava, pensava. Dividiriam, afinal, a conta?
Contraiu as sobrancelhas e buscou apoio. A pele úmida grudava no corino.
Caíram ambos exaustos, insatisfeitos, lado a lado. Eram grãos-mestres da maçonaria dos que estão em posição de irrevogável, ainda que vacilante, temosia - condição permanente de muitos de nós.
Sentiam ambos a vontade de escapar um do outro, eles que haviam se buscado com tanta sede. Uma lágrima no banho, o estômago inevitavelmente vazio, todo ocupado pelo vácuo. Estava, o mais alto, cheio do nada, que o torturava de modo incansável já havia dias. Arfava.
Em minutos, saíram. Um beijo ritual selou aquele encontro de duas almas, cada qual um centro de gravidade da solidão irrevogável.
--Me deixe na esquina. Desça essa rua e vire à esquerda. Sabe ir para casa saindo da Av. do Estado?...

sábado, outubro 13, 2007

Sobre o cinza e o azul

Com a ponta dos dedos, num movimento vigoroso, penteou as sobrancelhas de pêlos negros longos que encimavam os olhos, que agora eram baços e inexpressivos. A boca grande não mostrava os dentes, já que não havia traço de felicidade algum ali que não tivesse sido sobrepujado pelo fundo vazio que se instalara em seu estômago - vazio, apesar das esfihas.
A conversa partia apenas dos outros e assemelhavam-se muito mais a tentativas dos seres humanos de não se verem infinitamente sozinhos dentro de um mundo opressor. Era como se passassem em frente à casa e tocassem a campainha, apenas para que houvesse a certeza de que o vizinho teimava em viver e que a solidão ainda não chegara.
Era enganar-se demais, entretanto, imaginar que não chegaria. Sabia disso e tentava aguardar sem sofrimentos e da melhor forma que pudesse.
O ar quente que o envolvia - era primavera e fazia, impiedosamente, 32ºC - deixava-o cansado e inerte como um hipopótamo sob o sol - analogia lícita apenas enquanto existirem hipopótamos - princípio universal de fugacidade.
Eram monótonos os estímulos que tinha ali. Seus olhos castanhos e a pele branca estavam embotados. É verdade: seu coração não atrofiara, mas a sua estática realidade não era capaz de lhe proporcionar qualquer daquelas emoções raras que jazem nos interstícios da matéria quotidiana da qual ora nos destacamos e ora somos apenas bairro feito tijolo feito muro. Mais um muro.
Não via nenhum encanto na alegria difícil da solidão, pois não a conseguia extrair. Além disso, uma vez ele lêra que esta tal alegria difícil existia e acreditou chorando, pois é isso que sobra quando não há saída alguma.
Saiu por aí. Por vezes, viu algo que lhe alegrou o coração e elevou o espírito.
Muitas outras vezes, saiu na rua e observou o cinza. E caminhou no vento.

domingo, maio 20, 2007

De Clarices a Solanges ou a vida amorosa de um transeunte

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
(In: ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas)


Um dia, a tarde caiu e quebrou-se em mil pedaços, invadindo tudo. Não havia mais jeito: irrevogavelmente, o guerreiro estava prostrado, arquejando em meio a cacos negros de um vitral que já era a noite, que só escura porque precede a manhã.
Ali entendeu que não havia como fugir - seus trezentos anos de viagens em terra, mar e água se faziam sentir. As juntas cansadas o obrigavam a se escorar. Seu cavalo morrera e a armadura há muito fora abandonada para que pudesse prosseguir viagem. Estava honestamente nu pela primeira vez, e examinava seu próprio corpo como se este lhe fosse estranho e providencialmente vislumbrado pela primeira vez. Desejou morrer onde havia nascido, e o lugar chamava-se solidão. As pernas já não suportavam o peso das cicatrizes acumuladas ao longo de tantas batalhas sem propósito algum. Era um cavaleiro solitário e triste.
Soprou um vento frio, e ele abraçou seus joelhos sob a chuva, que teimosamente caía em maio.
Adormeceu na relva que lhe tornava a aspereza do chão mais suportável, mas não descansou em paz: por trás dos olhos, via aqueles que o encontrariam indefeso e lhe riscariam de espada mais uma vez o já chagado peito.
Acordou com os olhos vidrados, suor pelo corpo. Sem o consolo de ser tudo um sonho ruim, tinha a testa franzida e os olhos do indigente que se tornara. Cedo ou tarde chegariam.
A manhã seguinte não teve luz nem sol ou brisa - espada apontada para seu ventre de crente. Morrera o guerreiro!

Enterrado pela boa população do local, não mais suportava a dor que precede a morte que precede o renascimento - pois é sabido que é morrendo que se vive. A vida não passa de uma sucessão de mortes.
Cento e cinqüenta anos depois, tudo já decomposto: sobre seu túmulo, antieuclidiana, nascia uma orquídea.

sexta-feira, abril 20, 2007

Da gênese de um homem

Havia então um descompasso injustificado, uma quebra na dinâmica dos humores intersticiais de um organismo que se presumia vivo. E talvez estivesse vivo, já que pulsava.
O estômago já não estava cheio de poesia; parecia, no lugar, abrigar a crescente culpa da inércia e a raiva do enfado. Mas pulsava.
O pescoço, apesar dos protestos, ainda sustentava a cabeça fatigada pelos pseudo-problemas - a aceitação de que as coisas simples e cruelmente são, independentemente do desejável, do crível ou do moral, parecia insuportável. Um pseudo-problema ainda é um problema. Pulso.
Vários conjuntos a um tempo unitários e incompletos continuavam bailando indefinidamente numa roda. Gira, gira, gira - teimosamente, pulsa. Tudo é sincopado sob o céu de chumbo inalterável - ritmo da vida, indefinidamente.
Tristeza. Um estíolo cortado, corola desfeita, murcha e sem viço.
É a arritmia e a apnéia - parada cardio-respiratória.
Injeção de adrenalina no fatigado miocárdio.
Nasce um quase-vivo.
Ele vem de terno e gravata. Em seu bolso, o espírito domado, camisinhas e uma fatura de cartão de crédito.

quarta-feira, março 14, 2007

Mal do mundo nº 2

Não o culpo por sorrir pouco, pois é sabido que seu sorriso é feio, borrado, coberto da ferrugem que se acumula sobre os homens com o decorrer dos anos. Ferrugem também em seu corpo de ombros sempre curvos, e pernas e braços cruzados, em esforço para ocupar sempre tão pouco espaço quanto possível. Aparência doente. Decididamente, gado nômade na Somália.
Os olhos, egípcios e sempre observadores, desenhados a lápis, são duros e contradizem sua ternura inerente, tornando-se irremediavelmente torpes, com expressão pouco saudável - ar oprimido, de recalque - necessidade de sobreviver?
Por feio e pela feiúra, não consegue escape nem mesmo em sua inocuidade: dentro, a vida pulsa insistentemente e, não fossem as limitações impostas, viria aos borbotões, inundando tudo, arrastando as casas, os carros, a iluminação pública, lavando definitivamente o azinhavre que despoja o cobre de sua cor avermelhada, enlace de metal e sangue vivo.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Por onde ando (epifania ao som de Weezer)

Sinto que algo de errado está crescendo. Há um descompasso qualquer perturbando a ordem das coisas. Numa dessas noites abafadas, encarnei as características humanas mais repugnantes e fui hipócrita, pois as neguei com vontade de salvar minha pele. Persiste a preocupação com a opinião alheia, talvez mais forte que nunca. Houve o momento epifânico, e ele veio sem aviso. Prostrado, arquejei em desespero por ter finalmente conhecido a verdade a respeito do que de fato sou.
O grande afresco, todo colorido, havia finalmente desbotado e perdido a força conforme as lascas de sua tinta caíam ao chão e eram varridas por alguma serviçal indolente. Três mil anos de apagamento condensados em um segundo. Tudo o que sobrou foi a imagem tímida da decadência do que fora construído pelo homem, mas que perdeu o frescor ao longo do tempo, ícone da decadência de um império ou da falência de um mecenato iletrado.
A idéia de liberdade de então não vem senão como uma mentira, que se tenta justificar através das idéias de diferenças entre os humanos e na profusão de quadros explicativos da axiologia, todos elaborados às pressas, em desespero e fundados em algo que se quer crível.
Mesmo um projeto falido de puro alargamento do próprio eu parece mais profícuo que o atual, e causa a inveja de uma vida mais feliz, pautada por um ideal bonito e que parece render frutos a princípio, ainda que se saiba utópico no fundo de mim e de meu irmão.
Sei que me afasto de meus amigos, pois nunca soube como tratá-los. Que minha presunção não os tenha atingido com força.
Falta algo que não posso pedir a ninguém, algo que não deveria faltar e que falta e é o mal do mundo. Contaminei-me. Contaminei-me ou teria sempre sido assim e sido incapaz de perceber o que gritava em minha frente. Agora eu vejo com clareza a precariedade em que estou imerso e da qual não sei se é possível fugir. Talvez fugir não seja a escolha certa. No fundo, talvez não passe de um doloroso processo de aprendizagem, como tem sido sempre para aqueles cuja alma não se recusa a ver a verdade do mundo todo caótico em si e ordenado pelo pretensioso intelecto humano.
Não sei qual a saída para tudo isso. Só sei que vejo a solidão como realidade inescapável e dolorosa, até mesmo para aqueles que melhor fingem. Não se enganem: com o tempo, de nota em nota, percebo a realidade sem sol e estéril que os circunda e faz chorar quando estão sozinhos, estado primeiro e renegado dos homens.
Regida pelo acaso, a vida não passa do próprio acaso em movimento, se dobrando e desdobrando, criando a ilusão de sentido em cada uma dessas sobreposições que não se devem a nada além de mera sorte — um poro apenas, entupido, inflama-se sem que se levante qualquer dúvida a respeito do motivo de ser aquele o poro escolhido.
Grite, corte-se, mude o nickname do MSN, afete indiferença. No fim, é o que nos resta para construir a ilusão de que podemos, nem que por um átimo, estar de fato de mãos dadas com alguém, em grande celebração da plena comunhão de dois vazios.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Sobre apego e desespero

Não seja estúpido. Não confie em mim, pois não serei capaz de modificar coisa alguma. Não serei eu o que revolucionará qualquer coisa ou inventará uma sociedade alternativa.
Não confie em si também e nem na humanidade.
Não seja estúpido.
Seus credores o acompanham e você, cada vez mais arrochado, não se dará conta de que cada vez trabalha mais e que está cada vez mais espremido entre as engrenagens que fazem a sociedade andar. É difícil sair da casa de sua mãe e falta o dinheiro e a perspectiva de crescer em uma país que sofre de severa gastroenterocolite social. Produz-se cada vez mais comida e, assim, é natural que ela barateie. Ainda há a inanição, entretanto. Laptops cada vez mais baratos e MP4: trabalho e lazer cada vez mais portáteis, para que se possa aproveitar os congestionamentos de 4h que caracterizam dias de chuva dentro dos coletivos da cidade. Isso mesmo: tiram-nos cada vez mais sangue.
E temos sonhos aos quais nos agarramos em total desespero frente ao presente, em face dos últimos acontecimentos.
Para isso, vende-se até mesmo o Peugeot.
Tanto esforço, tanta luta.
Cavar com as mãos o solo argiloso do mangue é contraproducente, pois a lama volta a se depositar, não interessa quantas vezes se sulque a terra.
Contraproducente e desesperado.
Sonhos são capazes de turvar a realidade e de criar necessidades de busca incessante por algo que não é sequer tátil, lógico ou lucrativo.
Por um raio de esperança, atira-se uma vida ao lixo e desdenha-se o presente que é sofrido mas está em progressão.
Nada mais triste do que a esperaça falsa da busca da salvação da vida em uma empreitada já perdida.
No mangue barrento e sujo, o máximo que se acha são caranguejos, que podem ser vendidos ao longo das estradas. 10 por 2 reais.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

A mais-valia do nada

Belisque-se e sinta a dor que prova que você está vivo e respira.
Corte-se, veja o sangue correr. Lamba-o, sinta o seu sabor todo protéico, gosto da vida.
Sim, você está vivo e respira.
E nada além disso: alguns aglomerados de átomos.
A vida não é injusta, mas precária. Falam da vida como se ela fosse cheia de armadilhas e estratagemas: as pessoas só têm derrames para aprender que são mortais, só tem câncer para que aprendam que não devem fumar.
Buscar um objetivo transcendente na vida é a grande mais-valia de um planeta que só é possui nome porque possui temperatura adequada e água, condições indispensáveis à formação de coacervados.
E a vida humana tem o valor de qualquer vida, com a diferença que os humanos insistem em buscar aconchego no colo dos santos e de achar que sua presença neste mundo deve-se a algo além da pura coincidência, afinidade de moléculas e descargas elétricas.
Buscar ordem nisso não é mais do que exigir algo que não se possui. Não há destino, não há proposta. Um dia, fomos apenas carbono e a ele acabamos voltando sempre, sempre.
Sem dúvidas.
Viver é muito perigoso, mas não há nada nem ninguém que se importe com isso além daqueles que correm o perigo da mais-valia que é a vida. Não se engane: a não ser pelos choques e explosões de corpos celestes, o céu é todo ermo e silencioso. Deserto.

domingo, agosto 06, 2006

Sobre o mundo-cão e a inadequação

Já não é a primeira vez que escrevo aqui sobre o mundo-cão moderno que nos absorve, desumaniza, suga, põe de joelhos e faz chorar.
É óbvio que não há vida humana em sociedade sem o trabalho, sem essa cooperação mágica entre os seres, que é, somada à inteligência, o que nos permite abandonar as cavernas, a vida nômade, a carne sem sal. Mas é óbvio também que ao ser humano, posta sua racionalidade, não é suficiente ter o dia para o trabalho e a noite para dormir. Seres humanos têm sede de experiência, e as melhores coisas do mundo provavelmente foram criadas em momentos de extrema necessidade ou de lento tédio viscoso.
Mas há momentos em que não dispomos nem da possibilidade do tédio, porque já não há sequer o dia para o trabalho e a noite para o descanso. Porque descansar é perda de tempo, é claro. O tempo custa caro e as coisas devem ter utilidade: cabeça para usar boné. Um professor de minha mãe costumava brincar com os alunos que alegavam falta de tempo. Segundo ele, o certo é dormir no ônibus, a caminho de casa. Da meia-noite às 6h da manhã, estuda-se.
A piadinha, em contexto adequado, pode até guardar alguma comicidade. Mas o fato é que parece consistir em uma definição das piadas o fato de elas possuírem sempre uma bunda feia. Podem ser sobre racismo, discriminação, machismo, atos imorais, estereótipos equivocados etc. Nesse caso, a piada decalca um pouco do que acontece aos seres humanos que mal saem da adolescência e já são espremidos entre as engrenagens do capitalismo, que não exige deles nada além do que se pode dar. E eles dão a vida.
Como havia dito, nenhuma sociedade sobrevive sem o trabalho. Disso até vespas e formigas sabem. Importante notar que vespas e formigas não possuem consciência; possuem a inteligência de um motor de Fusca: trabalham e isso é em que consiste suas vidas. Garantir-lhes a sobrevivência é o suficiente. Vivem porque vivem, nada além.
Aos homens, não basta respirar.
O próprio caráter racional do ser humano quase implica insatisfação: sobreviver já não é o suficiente. Comida não basta: pedimos sashimi apenas de salmão, afinal atum é menos saboroso. Cria-se, portanto, uma tensão entre a natureza, que não tem nada de projetado para abrigar seres racionais que necessitam de eletroeletrônicos, e os seres humanos, que não se contentam de comer carne de caça crua.
Desprezar o atum é procurar um sentido para a vida, e o hedonismo parece ser a manifestação primeira da racionalidade humana.
Entretanto, parece ser cada vez mais difícil evitar que a tensão entre a natureza e o ser humano torne insuportável a vivência humana, já que o ser humano não pertence a esse mundo e está sempre e irremediavelmente deslocado. A falta de espaço para a vida parece então nos arrastar para um lugar que já é pequeno para nos abrigar: a vida que é antes de tudo primal, que não é a vida humana, mas é a vida pré-humana e, portanto, insuficiente e friíssima.
Quanto a quem não é gado, que seja dada a má notícia: não há espaço aqui. É necessário voar para longe, espaço afora. Nas idéias, na morte, no inferno. Tudo parece mais confortável que esse mundo que não alimenta nada além da nossa capacidade de apertar parafusos dia após dia, até sempre.
Em relação a quem acredita que vai conseguir cavar espaço nesse mundo, devo dizer que admiro a vossa força e coragem de viver.
No fim de tudo, não resta mesmo muita escolha além do suicídio ou da resignação.
Depois ainda dizem que somos livres.

quarta-feira, julho 26, 2006

Por que menos, não é mesmo?

Descrever-se é uma agressão. Não passa de esforço bobo e pouco profícuo: coloca-se nome nas coisas e pronto: a realidade é retorcida pela profusão de semas e ficamos mais distantes do Deus. E o Deus não é transcendente -- o Deus somos nós e nós somos tudo, porque "nós" em si já é um tipo de mais-valia.
Arrisco-me:
Sou como todos nós: eu também grito e preciso de alguém que ouça. Um grito não ouvido nunca existiu, e assim criamos suicidas mudos.
Não sou um suicida, mas só porque tenho a quem agradecer de joelhos. E eu gosto muito, gosto muitíssimo.
Amém, obrigado.

***

Juro que estou tentando chegar àquela humildade difícil que tem quem é de fato humilde. Não é fácil e o modo como me comporto é a prova disso.

"I am the biggest hypocrite
I've been undeniably jealous
I have been loud and pretentious
I have been utterly threatened

I've gotten candy for my self-interest
The sexy treadmill capitalist
Heaven forbid I be criticized
Heaven forbid I be ignored

I have abused my power
forgive me".

Colocar letras de música ainda me vem a contragosto. Ainda.

terça-feira, julho 11, 2006

Trazido pelo ócio

Quis escrever cartas, mas nem sei a quem.
O impulso é forte e quase instintivo: queria um leitor que me fosse antes de tudo afetuoso e paciente, que não se importasse se a carta em si é desimportante e lhe tenha ainda assim tomado tempo.
E não há o que dizer; não há sequer motivo para carta alguma.
Antes, há o direito e a necessidade de grito, e talvez o grito só exista se alguém o escutar.
E há a necessidade primal: a carta, sem para onde ou a quem e sem o quê, como boi que urra se tangido a ferro.
Para que serve seu urro se ninguém lhe socorrerá? Do mesmo modo, temos a carta, que não é uma carta de suicida. Suicidas escrevem cartas por motivos outros. Têm sorte; já usufruiram demais dos seus direitos, mas não acharam quem lhes ouvisse o urro.
Depois de tudo silenciado, não há silêncio; há urros.

sexta-feira, maio 26, 2006

Sobre recalque, inveja e Poppi

Não sei o que e nem sei como, mas sei que sinto um oco aqui.
Sei também que não queria senti-lo. Inveja mesquinha, falta de surra.
Opressão no peito e tendência a pensar que a minha vida é um saco.
E deve ser. Eu mesmo sou chato.
Chato de galocha, capa e guarda-chuva.
Encaremos isso: não se pode deixar o passado de lado, sem lhe atribuir nenhum valor. Somos frutos do que vivemos e nenhum momento é igual ao anterior, já que vivemos cada um que passa acumulando a experiência dos momentos antecendentes.
E esse é o princípio da música, da língua, da loucura e de tudo o que é linear.
Por isso que escutamos Tchakabum, ouvimos o Maluf e aturamos... e aturamos o Maluf.
Vidinha. E há os que riem de tudo. Bando de bestas.