domingo, maio 20, 2007

De Clarices a Solanges ou a vida amorosa de um transeunte

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
(In: ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas)


Um dia, a tarde caiu e quebrou-se em mil pedaços, invadindo tudo. Não havia mais jeito: irrevogavelmente, o guerreiro estava prostrado, arquejando em meio a cacos negros de um vitral que já era a noite, que só escura porque precede a manhã.
Ali entendeu que não havia como fugir - seus trezentos anos de viagens em terra, mar e água se faziam sentir. As juntas cansadas o obrigavam a se escorar. Seu cavalo morrera e a armadura há muito fora abandonada para que pudesse prosseguir viagem. Estava honestamente nu pela primeira vez, e examinava seu próprio corpo como se este lhe fosse estranho e providencialmente vislumbrado pela primeira vez. Desejou morrer onde havia nascido, e o lugar chamava-se solidão. As pernas já não suportavam o peso das cicatrizes acumuladas ao longo de tantas batalhas sem propósito algum. Era um cavaleiro solitário e triste.
Soprou um vento frio, e ele abraçou seus joelhos sob a chuva, que teimosamente caía em maio.
Adormeceu na relva que lhe tornava a aspereza do chão mais suportável, mas não descansou em paz: por trás dos olhos, via aqueles que o encontrariam indefeso e lhe riscariam de espada mais uma vez o já chagado peito.
Acordou com os olhos vidrados, suor pelo corpo. Sem o consolo de ser tudo um sonho ruim, tinha a testa franzida e os olhos do indigente que se tornara. Cedo ou tarde chegariam.
A manhã seguinte não teve luz nem sol ou brisa - espada apontada para seu ventre de crente. Morrera o guerreiro!

Enterrado pela boa população do local, não mais suportava a dor que precede a morte que precede o renascimento - pois é sabido que é morrendo que se vive. A vida não passa de uma sucessão de mortes.
Cento e cinqüenta anos depois, tudo já decomposto: sobre seu túmulo, antieuclidiana, nascia uma orquídea.