domingo, novembro 25, 2007

A busca

"Meu bonitinho" foi como ele lhe chamou, e o outro, ainda que aparentasse algum interesse, foi sugado para uma outra esfera, em que não havia nada além do escrutínio de algumas lembranças que faziam com que ele sentisse ausência, bem ali, em seu estômago, já que era no estômago que ele sentia a maioria das coisas. O estômago agora estava cheio daquela sensação que apenas a angústia e a brisa matinal causam nas pessoas - um frio inacreditável que lhe gelava os ossos, apesar da claridade do sol. Pensou em sua mãe, em Bruno, em amizades para as quais não encontrava mais tempo ou sentido, na situação precária de suas contas - se nada realmente importa, por que sua situação era tão opressiva?
Era inescapável, entretanto: estava ali, num quarto, e alguém o chamara de "meu bonitinho", alguém que, como ele, apegava-se a algumas migalhas de um sub-amor qualquer, infinitamente opaco, para dar algum sentido a esta agitação que o senso comum chama de vida.
Ao pensar nisso, tudo pareceu-lhe patético. Os abraços, o suor que escorria e os beijos não seriam capazes de tanto. O quarto era barato; dois pedaços do mosaico de espelhos do teto haviam caído. Pensou que um pudesse cair e enterrar-se-lhe diretamente na garganta e seria o fim de tudo.
As paredes azuis estavam cheias de bolhas, e a tinta caía dias após dia. Havia mofo e a sensação era de o planeta todo cheirava a vinagre, irremediavelmente.
O ritmo acentuara-se. O espelho. A garganta. Que a cortasse sem dó, pois já era inútil - fazia anos que não produzia um som qualquer que fosse genuinamente forte, pungente. Havia a morte da alma; havia a rouquidão perene.
Pensou no trabalho - os músculos retesaram-se; gemeu de modo insincero, pois ainda lhe sobrava, teimosa, alguma generosidade. Por que era mesmo que se sujeitava a algo assim?
Uma das mãos encontrou outra e os dedos entrelaçaram-se. A maldita empregada não virá amanhã; há reunião de pais na escola de sua filha. As pessoas têm filhos tão inadvertidamente...
"Meu bonitinho"... "Meu"... "bonitinho"... Era para rir. Quem, em sã consciência, diria algo assim - assim, inadvertidamente? Uma mão pousou em sua nuca, firme, trouxe sua cabeça para frente. "Bonitinho"... Era invasivo, carinhosamente invasivo, e era a transgressão do pacto, afinal, não era de comum acordo que estavam ali comungando de um mesmo vazio?
Que viesse um terremoto, um cataclisma, que uma lâmina de espelho os transpassasse. Inundação, desmoronamento... Nada importava e nada seria inédito, pois, fatalmente, já ocorrera antes, sem maiores conseqüências. A cabeça do mais alto, cansada de mentar, pensava, pensava. Dividiriam, afinal, a conta?
Contraiu as sobrancelhas e buscou apoio. A pele úmida grudava no corino.
Caíram ambos exaustos, insatisfeitos, lado a lado. Eram grãos-mestres da maçonaria dos que estão em posição de irrevogável, ainda que vacilante, temosia - condição permanente de muitos de nós.
Sentiam ambos a vontade de escapar um do outro, eles que haviam se buscado com tanta sede. Uma lágrima no banho, o estômago inevitavelmente vazio, todo ocupado pelo vácuo. Estava, o mais alto, cheio do nada, que o torturava de modo incansável já havia dias. Arfava.
Em minutos, saíram. Um beijo ritual selou aquele encontro de duas almas, cada qual um centro de gravidade da solidão irrevogável.
--Me deixe na esquina. Desça essa rua e vire à esquerda. Sabe ir para casa saindo da Av. do Estado?...