domingo, junho 29, 2008

O bebê de Rosemeire

Ver filmes lhe haviam estragado a vida. Eles lhe haviam ensinado a acreditar em almas gêmeas e em destino. Tinha certeza de que havia uma pessoa que lhe fosse fazer feliz para sempre. Enquanto não o encontrava, gastava uns trocados toda semana em uma edição da Carícia, em que via os meninos de Malhação sorridentes falando sobre como suas parceiras ideias deveriam ser, sobre quais são suas comidas prediletas. Ela não percebe o photoshop no rosto deles. Nem a venda em seus próprios olhos. Recorta-os todos, e cola na agenda, junto dos bilhetinhos que troca nas aulas com suas amigas enquanto a professora fala sobre uma álgebra incompreensível, para a qual não parece haver espaço em sua vida. Ela pinta as unhas de vermelho toda semana - as dos pés, sua amiga pinta, pois a falta de exercício lhe rendeu, além do encurtamento nos tendões e da falta de flexibilidade, uma curva na coluna que lhe incomoda se ficar muito tempo curvada. Na verdade, já passa tempo de mais curvada. Não tem postura devido a seus músculos flácidos. O excesso de salgadinhos e a bebida renderam a ela e suas fezes um aspecto amarelado. É o que ela inconscientemente ganha por abusar da boa-vontade de seu fígado.

Eu sempre curti assistir TV, ainda mais quando a Márcia vinha aqui. Ela é doida pelo Richard Gere. Sempre vemos alguma coisa na Sessão da Tarde antes que comece Malhação. Às vezes ela traz um pacote de salgadinho Fofura e nós comemos tudo. Ela faz minhas unhas do pé, porque eu tenho dor quando fico abaixada muito tempo. Gosto delas vermelhas e passo a lixa no calcanhar porque ele racha. Tenho um pôster do Cauã Reymond na porta do meu armário. Minha mãe às vezes entra aqui, manda abaixar o rádio, diz para eu limpar a sujeira do cachorro e tirar o pó. Odeio tirar o pó e, por isso, acabo dizendo que já faço, que já vou, que me deixe ouvir um pouco de música, que é o que me faz relaxar depois que eu volto da escola. Às vezes, saio da escola e fico com os meninos ali perto, num bar, fumando e bebendo alguma coisa. É, eu fumo... É a parte mais legal do dia - ali dou um tempo para esquecer da encheção da minha mãe, da álgebra que eu não entendo, e ainda vejo se encontro o Gui. Às vezes me canso de esperar para ver o Gui e acabo dando uns beijos no Paulo. Em casa, não tem internet.

Às vezes, depois da escola, se sobra algum dinheiro, compramos cigarros e um saco de Fofura para comer à tarde na casa da Rosemeire. Às vezes damos uma olhada nas revistas que trazem os meninos da TV falando daquilo que gostam. Normalmente, diz a revista, fizeram escola de teatro enquanto estavam na escola. São lindos e eu às vezes penso um pouco se é com um tipo assim que eu vou casar. Outras vezes, penso que preciso mais de um Richard Gere. A Rose, não... Ela vai acabar com alguém mais novo, tipo o Cauã Reymond... Ou talvez, por falta dele, ela fique mesmo é com o Paulinho. Era com ele que ela estava na cama quando o estrado arrebentou e ela deu com as costas no chão e foi parar no hospital e ficou quatro dias gemendo e à base de Tandrilax. Talvez nas camas, do Paulinho e do hospital, seja o lugar onde ela esquece do Cauã.

Pior que ensinar álgebra e perceber que o conteúdo não é absorvido é perceber que não é aquele o único conteúdo a ser absorvido. Parece que falo outra língua, que sou de outro mundo. Fui ontem da escola para o ponto de ônibus e, no caminho, vi duas meninas, ambas do primeiro ano, num boteco. Entre bebuns, meninos mais velhos e outros caras - entre eles, o Paulinho, traficantezinho-de-porta-de-escola -, elas fumavam e bebiam cerveja. O boteco é ponto de drogas, é sabido, e isso me faz pensar que algo vai mal.

Era umas quatro da manhã já quando chegamos da balada na minha casa. Tinha chamado a Rosemeire para a balada e ela foi porque mulher não pagava até 1h da manhã; aí, era só pagar o busão. Ela estava altinha já porque tinha tomado umas cervejas e dado uns tapinhas. Toda soltinha. Deitou na cama e eu deitei junto. Em pouco tempo, estávamos sem roupa e desistido de ficar só nos carinhos. Ela era tinha um cheiro estranho na boca e ela era toda meio amarelada. Estava meio gordinha também. Primeira virada na cama e o estrado quebrou. Acabei tendo que levar no pronto socorro porque sentiu muita dor. Ela não tinha dinheiro para o remédio que o médico receitou, então, além de não ter rolado de passarmos a noite juntos, tive que comprar o tal remédio.

Dei sinal para um táxi e ele não parou. Acabara de sair cansada de um plantão. Xinguei o motorista com raiva. Chovia, chovia. Dei sinal a um segundo táxi, quando já estava encharcada. Ele parou, eu entrei e seguimos. Quatro quarteirões para frente, vejo o primeiro táxi sobre a calçada - um poste torto em sua frente, o motorista inconsciente, a buzina disparada, um barulho infernal sob a chuva que ainda caía. Há vezes que parece que a providência nos protege. Sentia-me encharcada, com um princípio de resfriado, mas salva. Nunca se sabe quando o taxista nos ignorará ou o estrado da cederá para nosso bem - apesar do Tandrilax.

Um dia, Rosemeire saiu com as vinte unhas vermelhas e uma saia curta e umas amigas e Paulo e uns outros meninos. Nasceu, nove meses depois dessa noite, uma criança que hoje tem sete anos. Ela vive com a mãe num cômodo-e-cozinha no quintal da casa da mãe de Rosemeire. Rosemeire ainda detesta tirar o pó, mas descobriu que cozinhar é bastante pior, motivo pelo qual a criança termina por comer bastante miojo, o que a mantém magra, ao contrário de sua mãe. A criança é também bastante pequena para sua idade e vive meio suja. Herdou da mãe a cor amarela. A mãe, a criança sabe ser Rosemeire; do pai, Paulo, nada sabe além de que viajou quando ele era bem pequeno. Não é de todo mentira - viajou, sim, para uma penitenciária em Marília faz já um ano e voltará em quatro se tiver bom comportamento.