O bebê de Rosemeire
Eu sempre curti assistir TV, ainda mais quando a Márcia vinha aqui. Ela é doida pelo Richard Gere. Sempre vemos alguma coisa na Sessão da Tarde antes que comece Malhação. Às vezes ela traz um pacote de salgadinho Fofura e nós comemos tudo. Ela faz minhas unhas do pé, porque eu tenho dor quando fico abaixada muito tempo. Gosto delas vermelhas e passo a lixa no calcanhar porque ele racha. Tenho um pôster do Cauã Reymond na porta do meu armário. Minha mãe às vezes entra aqui, manda abaixar o rádio, diz para eu limpar a sujeira do cachorro e tirar o pó. Odeio tirar o pó e, por isso, acabo dizendo que já faço, que já vou, que me deixe ouvir um pouco de música, que é o que me faz relaxar depois que eu volto da escola. Às vezes, saio da escola e fico com os meninos ali perto, num bar, fumando e bebendo alguma coisa. É, eu fumo... É a parte mais legal do dia - ali dou um tempo para esquecer da encheção da minha mãe, da álgebra que eu não entendo, e ainda vejo se encontro o Gui. Às vezes me canso de esperar para ver o Gui e acabo dando uns beijos no Paulo. Em casa, não tem internet.
Às vezes, depois da escola, se sobra algum dinheiro, compramos cigarros e um saco de Fofura para comer à tarde na casa da Rosemeire. Às vezes damos uma olhada nas revistas que trazem os meninos da TV falando daquilo que gostam. Normalmente, diz a revista, fizeram escola de teatro enquanto estavam na escola. São lindos e eu às vezes penso um pouco se é com um tipo assim que eu vou casar. Outras vezes, penso que preciso mais de um Richard Gere. A Rose, não... Ela vai acabar com alguém mais novo, tipo o Cauã Reymond... Ou talvez, por falta dele, ela fique mesmo é com o Paulinho. Era com ele que ela estava na cama quando o estrado arrebentou e ela deu com as costas no chão e foi parar no hospital e ficou quatro dias gemendo e à base de Tandrilax. Talvez nas camas, do Paulinho e do hospital, seja o lugar onde ela esquece do Cauã.
Pior que ensinar álgebra e perceber que o conteúdo não é absorvido é perceber que não é aquele o único conteúdo a ser absorvido. Parece que falo outra língua, que sou de outro mundo. Fui ontem da escola para o ponto de ônibus e, no caminho, vi duas meninas, ambas do primeiro ano, num boteco. Entre bebuns, meninos mais velhos e outros caras - entre eles, o Paulinho, traficantezinho-de-porta-de-escola -, elas fumavam e bebiam cerveja. O boteco é ponto de drogas, é sabido, e isso me faz pensar que algo vai mal.
Era umas quatro da manhã já quando chegamos da balada na minha casa. Tinha chamado a Rosemeire para a balada e ela foi porque mulher não pagava até 1h da manhã; aí, era só pagar o busão. Ela estava altinha já porque tinha tomado umas cervejas e dado uns tapinhas. Toda soltinha. Deitou na cama e eu deitei junto. Em pouco tempo, estávamos sem roupa e desistido de ficar só nos carinhos. Ela era tinha um cheiro estranho na boca e ela era toda meio amarelada. Estava meio gordinha também. Primeira virada na cama e o estrado quebrou. Acabei tendo que levar no pronto socorro porque sentiu muita dor. Ela não tinha dinheiro para o remédio que o médico receitou, então, além de não ter rolado de passarmos a noite juntos, tive que comprar o tal remédio.
Dei sinal para um táxi e ele não parou. Acabara de sair cansada de um plantão. Xinguei o motorista com raiva. Chovia, chovia. Dei sinal a um segundo táxi, quando já estava encharcada. Ele parou, eu entrei e seguimos. Quatro quarteirões para frente, vejo o primeiro táxi sobre a calçada - um poste torto em sua frente, o motorista inconsciente, a buzina disparada, um barulho infernal sob a chuva que ainda caía. Há vezes que parece que a providência nos protege. Sentia-me encharcada, com um princípio de resfriado, mas salva. Nunca se sabe quando o taxista nos ignorará ou o estrado da cederá para nosso bem - apesar do Tandrilax.
Um dia, Rosemeire saiu com as vinte unhas vermelhas e uma saia curta e umas amigas e Paulo e uns outros meninos. Nasceu, nove meses depois dessa noite, uma criança que hoje tem sete anos. Ela vive com a mãe num cômodo-e-cozinha no quintal da casa da mãe de Rosemeire. Rosemeire ainda detesta tirar o pó, mas descobriu que cozinhar é bastante pior, motivo pelo qual a criança termina por comer bastante miojo, o que a mantém magra, ao contrário de sua mãe. A criança é também bastante pequena para sua idade e vive meio suja. Herdou da mãe a cor amarela. A mãe, a criança sabe ser Rosemeire; do pai, Paulo, nada sabe além de que viajou quando ele era bem pequeno. Não é de todo mentira - viajou, sim, para uma penitenciária em Marília faz já um ano e voltará em quatro se tiver bom comportamento.